O vento batia no rosto, e era cortante como as folhas dos pinheiros — presenças constantes. Para quem cresceu no meio dessas estepes geladas, contudo, a brisa fria era apenas o acalento da terra natal, cujos horizontes eram diferentes de todos os outros onde já estivera. Os Picos dos Deuses de Ébano se estendiam sinistros, por detrás da floresta distante dois dias a cavalo, com nuanças pardas e cinzentas entremeadas de sombras e neve branca, que se movia dando ar de coisa viva ao colosso.

O som dos cavalos trazia recordações. O espírito parecia voar para outros tempos. Quantas aventuras já vivera naquelas colinas, quantos perigos já enfrentara, quantas vezes estivera naquelas regiões junto com seu avô ou seu pai, que lhe ensinaram as artes do rasteio, da espreita e da caça. De cima daquelas montanhas, realmente se tinha a sensação de estar perto dos deuses. Mas havia muitos perigos, também! E os que lá se escondiam eram muito maiores que as presenças divinas.

De súbito, surpreendeu-se por ter pensamentos tão melancólicos e alegrou-se um pouco. Já não era o mesmo de antes, pois aquele que abandonara as estepes à procura de aventuras e fortuna, há muito se tornara um homem cujos princípios já não eram fortes como antes, substituídos pelos vícios dos povos civilizados. Antes de sair dali, o homem trazia o aço como extensão de sua própria personalidade, não hesitava em mostrar a quem quer que fosse que os povos descendentes de Áster eram os senhores do Norte enregelado e herdeiros dos impérios de todo o resto do mundo. Agora era muito mais condescendente com as adversidades, e isso não era necessariamente bom.

Não. Não era! Os que nasciam em Ith tinham na liberdade toda a razão de sua existência e lutavam para se manter livres do jugo dos opressores, desde que o antigo povo aqui chegara, vindo do oeste e vendo no horizonte do leste o surgimento das montanhas geladas e de seus picos de prata pela primeira vez. Durante sua história, sempre obtiveram sucesso nas batalhas em que pesavam a sua ânsia por sobrevivência e autodeterminação, cujos preceitos, comuns de sua tribo, diziam que um homem velava pela discrição e introspecção, tinha uma pedra no lugar do coração, usava a língua apenas para clamar os gritos de guerra, os olhos para observar a morte do inimigo e os ouvidos para escutar o clangor das espadas.

“Uma pedra no lugar do coração...” Que piada! Descobrira a duras penas que seria melhor se assim tivesse sido sempre, mas já não possuía um coração no peito.

Os cavalos desceram uma ravina e dobraram a direita, uma nesga de sol iluminada os troncos ao seu lado. E sua cabeça parecia ainda mergulhada em névoas de melancolia. Orgulhou-se de como os de Ith eram numerosos em meio àquelas matas natais, cuidando de suas terras. Uma pequena parte daqueles homens livres morava em vilarejos e em pequenas cidades por eles construídas desde que abandonaram os acampamentos nômades há muito tempo. Desde que encontraram a terra onde hoje viviam, exuberante e excepcionalmente farta em meio ao Norte.

Tornaram-se então mais amistosos para com os viajantes mercadores e já dominavam os hábitos de plantio e lavoura há muito. No entanto, ainda conservavam as características marcantes do antigo passado como caçadores e coletores de frutos e madeira.

Viviam em clãs perfeitamente entrosados. Reunidos e congregados na harmonia da partilha e da autodefesa contra inimigos comuns. Eram representados por líderes tribais fortes e dignos escolhidos entre os melhores de cada clã. Há muito promoviam a união entre os homens e as mulheres das diferentes Casas, o que era motivo para grandes banquetes e alegria.

Os do Norte apreciavam como poucos um assado e uma caneca de cerveja fria, à beira de uma fogueira, durante as festas noturnas dos clãs. Sorriu...

Já ao pé da colina, ao atravessar o rio Ogreh com suas águas cristalinas, o viajante tinha agora outras lembranças de infância, quando pescava com as mãos nuas — tinha-se que entrar nas águas geladas, que vinham no máximo até a cintura, pôr-se imóvel e em silêncio, até que um peixe se aproximasse. Por fim, era preciso pegá-lo antes que fugisse no meio da espuma e das pedras. Adquiria-se assim o controle sobre os músculos entorpecidos pelo frio e a concentração, necessários aos caçadores. Um dia caçariam homens, que eram bem menos ágeis, além de maiores e mais fáceis de se acertar com uma lança.

Só muito tempo depois foi descobrir que, aquilo que parecia ser uma brincadeira, era um ritual de paciência e agilidade. Devia sentir os movimentos que o animal faria e se antecipar a eles. Daí vieram os hábitos do predador, comuns nos linces, nas águias, nos lobos e em todos os de Ith: observar, esperar e agir.

Era o que o peixe fazia. O pescador tinha que fazê-lo melhor para que a armadilha funcionasse. Isso ensinara que nem sempre uma criatura tem a vantagem no confronto em seu próprio meio. Às vezes, o adversário é mais esperto e a inteligência e conhecimento o colocam à frente da habilidade do oponente.

Suas recordações foram postas de lado quando percebeu a fumaça das chaminés de sua aldeia mais adiante, atrás da próxima elevação. Chaminés que expeliam a fumaça das fogueiras acesas para esquentar as casas frias e para cozinhar. Espantou-se de já estar tão perto de casa, embora achasse que nunca chegaria. Os devaneios lhe haviam tirado a atenção do caminho e, quando o cheiro familiar da comida lhe encheu os pulmões, alegrou-se. Isso significava que já era observado e seguido há longo tempo.

Seu peito inflou-se com aquele ar.

Chegara em casa.

Um bárbaro não sorri muito, mas definitivamente já não era o mesmo homem que daqui saíra há muitos invernos. O conhecimento do mundo e as aventuras que tivera haviam transformado-lhe o espírito e os modos, por isso permitia-se estampar um sorriso de satisfação na face morena.

A ansiedade falou por si só e o galope foi transformado instintivamente em corrida das mais ligeiras, como a de um ataque de lanceiros da maldita cavalaria Kurv, que novamente lhe trazia recordações. Era inevitável. Sempre que se perdia em pensamentos, os Kurv ressurgiam em sua mente. Lembrava-se com amargura de tempos idos, de sofrimento e morte. Mas não devia se ater a isso agora. Estava em casa!

Atrás do próximo tufo de árvores, estaria sua vila, e no momento era tudo em que poderia pensar.

Devido ao frio intenso, tufos de vapor rolavam pelas narinas de sua montaria e de seus dois outros cavalos — carregados com suas armas, roupas e equipamentos, além de ricos espólios de suas andanças.

Uma pele branca de búfalo da neve lhe cobria as caras vestes negras, bem como a capa de veludo azul escuro com barras bordadas, compradas em um mercado da cidadela de Crulwardzir. Trajava ainda uma armadura de placas de aço que lhe cobria o tórax, os ombros e o braço da espada, deixando o esquerdo mais leve, para o uso do escudo. Usava também o saiote de cota de malha e couro tacheado típico dos exércitos imperiais e cinturão largo, de onde pendia o suporte de couro com adaga, cuja bainha possuía biqueira de prata trabalhada.

O cinturão era ornado com fivela de ouro entalhado com efígie de um cavalo de duas cabeças — símbolo de seu clã tribal — fundida pelos artesãos de Navstcary, na época de suas pilhagens pelos Reinos do Oeste.

Nas coxas, utilizava ainda um par de placas e, sobre as botas, perneiras de aço completavam a armadura de ataque ligeiro, confeccionada sob medida e por suas ordens aos armeiros de Krajh, ao norte de Drauhfall, nos Reinos Alianos, onde muitas cidades antigas e sólidas foram esmagadas durante as Campanhas de Contenção.

Não usava jóias.

Suas mãos estavam cobertas por grossas luvas de couro vermelho, cujos punhos vinham até o meio dos antebraços. Calçava botas longas de fino acabamento, no valor de uma moeda de ouro o par.

Sobre a cabeça, um elmo de guerra, metálico, preso ao queixo por correia jugular de couro com escamas perfiladas de metal, como as de um dragão. Tinha a viseira levantada e, da testa para a nuca, havia vasta crista de chifres negros de tamanho decrescente, engastados no aço.

O cavalo puro-sangue de cor negra, quase anil, era ornado de estribos com detalhes em prata e usava uma manta de veludo do mesmo tom de azul da capa de seu cavaleiro. Os arreios eram de couro negro, polido e brilhante. A crina e a cauda do belo animal eram trançadas pacientemente em finas cordas, com bolotas de prata nas pontas. Trazia em seu dorso à esquerda, fixada na posição oblíqua, uma bainha de couro vermelho com tachas prateadas e tiras de couro negro trançadas, donde surgia o cabo de madrepérola de uma formidável espada de duas mãos com guardas douradas e pedras semipreciosas incrustadas. No pomo do cabo, a imagem do cavalo de duas cabeças em ouro dava o ar de jóia à terrível arma de lâmina platinada.

Sobre a espada, preso por correias, um escudo redondo médio, de bronze e aço, também com a efígie do cavalo de duas cabeças. Nos outros cavalos, também ornados de forma semelhante, outras armas de fino e mortal entalhe.

A cavalgada prosseguia em meio a honrosos carvalhos e moitas de bétulas baixas. Lembrou-se então de algo específico. Do porquê fora embora um dia. Recordou-se como o fizera sempre desde que partira...

Conseguia ainda ver o grupo de cavaleiros chegando, vestindo cotas de malha e trazendo escudos triangulares pretos com um ramo de visgo branco desenhado no meio. Na época, os rapazes de Ith haviam corrido para apanhar as espadas e escudos, mas não foi necessário lutar e o sangue quente desacelerou ao verem que eles não traziam lanças, sinal de paz. Eram emissários.

Fora aliciado junto com muitos de seus irmãos a troco de aventuras, sangue e histórias sobre a ameaça que as hordas kordólicas seriam para Ith e seus clãs, se não fossem detidas antes mesmo que saíssem de seus territórios, a oeste do Vale Salgado. Havia ainda a promessa de saques de todas as riquezas que pudessem carregar nas ofensivas da frente mercenária que comporiam. Muitos acreditaram e seguiram aqueles enviados.

E as aventuras e os saques foram muitos. Como também foi o sangue derramado por esta causa estrangeira; para defender um rei que nunca haveria de ser visto e que, após muitas estações de horríveis embates, continuava sem conhecer.

Depois das recordações, sempre se sentia mal. Sua vida posta à disposição de um homem que não pegava em sua espada nas suas próprias guerras. Que contratava mercenários para lutar em seu nome. Que punha seus exércitos sob o comando de escorpiões com patentes de generais e continuava com suas festas intermináveis impregnadas da mais profunda devassidão, enquanto a morte se abatia sobre os seus.

Este guerreiro achava agora que talvez tivesse perdido tempo. Não sempre. Não desde que partira. Só depois que descobrira que muito mais importava a um homem que a batalha e o saque em si. Já havia servido demais aos interesses dos outros. Era jovem demais para compreender, na época, que as hordas de Kordol nunca chegariam até as florestas do Norte, mesmo que houvesse algo que valesse a pena conquistar por essas colinas geladas, além de escravos. E muitos homens bons tinham tentado mostrar isso a ele.

Então recordações mais intensas vieram, e era como se tivesse fechado os olhos e sonhado enquanto trotava para os portões de Ith. A paisagem sumiu de seus olhos e tempos de dor invadiram sua lembrança.


Os inimigos... Eram quase cinco mil ao todo, contando as tropas de arqueiros, a cavalaria de lanceiros e a infantaria portando machados e porretes. Um exército outrora devastador, mas praticamente sem máquinas de guerra. As poucas unidades estavam ultrapassadas ou muito velhas. Estavam despreparados. Foram pegos de surpresa.

Nenhum exército que se prepara para invadir Kallazur, como haviam dito os emissários de Tolsfo, o mais poderoso reino das terras do Norte, poderia estar naquelas condições. E foram massacrados como antílopes pela matilha de lobos durante menos de dois invernos de campanha.

Em seguida, vieram as investidas dos Reinos Alianos que, atravessando o Mar Ocidental e cruzando também ao sul, pelas terras dos Reinos de Tug, marcharam contra Tolsfo, que se encontrava em território de Kordol, saqueando o que sobrara das cidades de Artecthan, Badinarat e Histar Axer. Naquele ponto o mundo já sabia que os planos de Kallazur não eram apenas se defender de Kordol. E os renegados de Ith lutavam por Tolsfo, o Maldito!

Intimidados com as claras intenções dos exércitos do rei de Kallazur “Tolsfo, o Carniceiro” — como o covarde passou a ser conhecido pelas próprias tropas — e querendo se aproveitar de um hipotético enfraquecimento de suas forças após Kordol cair, com alguma resistência, iniciaram-se as Campanhas de Contenção, onde os povos de Alian tinham a intenção de deter o império em expansão.

Foram destruídos um a um com a magia corrompida de feiticeiros negros usados pelo rei covarde.

Alguns argumentavam que Tolsfo tinha mesmo interesse era nas ricas cidades de Alian. Iniciara suas conquistas por Kordol apenas para aumentar seu exército. Como? Perguntavam alguns menos dados a reflexões estratégicas. A resposta pareceria bizarra para os que não haviam presenciado tudo o que acontecera. Inexplicável, até!

Desde o início havia a ordem expressa, vinda dos comandos das tropas de não mutilar demais os oponentes. Recomendação tão absurda quanto impossível de ser obedecida por homens brutos armados com espadas, defronte a um inimigo que não se deixaria enfiar uma lâmina na goela sem resistência. Contudo não se podia compreender tal motivação sem saber que havia uma razão por trás. Antes que soubessem o porquê de tal advertência, vieram as primeiras punições. As amputações eram punidas com o corte de dois dias de ração para todo o grupamento.

A proficuidade dos lanceiros Kurv — cerca de mil homens treinados e entrosados como irmãos, que vinham de terras distantes — se mostrou na prática, empalando tudo o que se movia em seu caminho. Lanças não retiravam pedaços, afinal. Não demorou muito para que se descobrisse o porquê da proibição das amputações, e aí começou o pesadelo.

Dali em diante sempre foi noite, no caminho daquele pequeno punhado de mercenários vindos de Ith, que se misturava a milhares de homens vindos de outras terras. Pela primeira vez, mostrava-se o horror além do horror, como se não fosse terrível o suficiente caminhar por campos de homens decapitados e lama feita de sangue e terra. Talvez Kallazur não tivesse reunido número suficiente de mercenários para se juntar ao seu exército e satisfazer os objetivos de Tolsfo. Mas desde o início, havia uma carruagem negra que era puxada por parelha de cavalos negros que flutuava no ar, sobre as cabeças dos guerreiros e seguia sempre... Sem nunca mostrar quem carregava.

Havia mais no ar além da poeira e do cheiro de fumaça, algo mais tênue que dobrava a realidade, pervertendo o destino dos homens, obliterando a razão e o que era justo. Nos campos de batalha, rindo de braços fortes empunhando espadas, havia a magia! Negra como as sepulturas.

Kordóis mortos eram reanimados e seus corpos sem vida levantavam-se do solo, mas não do sono. Formaram a primeira linha nos campos do genocídio, onde mulheres e crianças participavam do destino dos seus homens. Foi isso que surpreendeu também os Reinos Alianos, pois ao contrário que imaginavam, os exércitos de Tolsfo cresciam ao invés de enfraquecer. Não imaginavam que os kordóis caídos agora empunhavam, com seus membros mortos, suas espadas ao comando de Kallazur.

“Não amputem os membros!”

“Não destruam os crânios!” , escutava.

Que absurdo era aquele?

Mortos-vivos que tivessem membros amputados não eram de muita valia quando se tratava de empunhar uma espada e um escudo.

“Que sacrilégio! Que profanação fora aquela?”


As lembranças vinham à mente do bárbaro num vagalhão.

Parecia que o aproximar-se de casa lhe trazia muitos invernos de ausência em poucos instantes. Seu encéfalo de homem acostumado às guerras rememorava os cortes de espada, as flechas aparadas pelo escudo, os golpes de massa e as esquivas das lanças sedentas de morte. É inexplicável como as guerras imprimem cada som e cada cheiro na memória de um homem, e com elas vem medo, tristeza, desamparo, humilhação...

Mais que a morte, a perversão dos sentidos. Da sanidade. Que empunhava lanças em fileiras ao seu lado, mas que também vinha ao seu encontro. Pois as bruxarias também foram usadas pelo outro lado, estando mais perto de lhe tirar a vida do que as armas deste mundo. Uma disputa entre magos para ver quem controlava mais cadáveres, uns contra os outros. Alguns daquelas abominações já marchavam há muito, depois de mortas, e suas carnes já haviam se decomposto, restando apenas ossos pouco ou nada cobertos.

A mente do bárbaro viajava para um dia de agonia e exaustão, de medo e superação, em colinas muito distantes dali. Comuns demais para se lembrar direito de sua paisagem arenosa e cheia de pedras. Mas nada diminuía essa lembrança. Lembrava-se sim, da morte! Da traição!


Num campo de batalha para além do rio Older, um bruxo de nome Khe, a serviço das forças de Tolsfo, fora corrompido pelo ouro de Alian — se é que o ouro interessa ao demônio — ele desceu do interior de sua carruagem negra que singrava o ar e, do alto de uma elevação proferiu suas palavras de traição. Voltou um regimento de mortos-vivos, coincidentemente, contra a horda que o bárbaro comandava. Uma operação tão inusitada como fadada ao sucesso, pois ter uma parcela dos próprios aliados, de um instante para outro voltando-se contra os companheiros era algo a que nenhuma disciplina tática poderia resistir. Aquele filho de Ith jamais esqueceria isso!

A tarde já ia e o sol avermelhava o horizonte reto. As lanças, com suas flâmulas esfarrapadas, esticadas acima das cabeças dos homens, delineavam um contorno convulsivo de movimentos e arremetidas, com o ar imerso numa névoa de terra, grossa e marrom.

Com as faces terrificadas e endurecidas pelo sangue, que ardia dentro dos seus corpos, os guerreiros iam à batalha, animados a hidromel e visbadf. Caíam, de tão bêbados.

Parecia, contudo, que o cão negro das trevas liderava as tropas revividas dos carniçais, feitos de esqueletos e carne podre. Trajando farrapos e restos de armaduras, marchavam para tirar a vitória das forças humanas. E o bárbaro de Ith estava bem ali, além de muitos outros homens estrangeiros, de valor e honra.

A lama do solo borbulhava com as passadas largas da corrida das tropas que se engalfinhavam ferozmente com o inimigo. Ossos das costelas eram quebrados, membros de pedra eram cortados, mas as criaturas não tombavam até que uma lâmina lhes esmagasse o crânio ou rompesse sua coluna vertebral, o que dispersava o encantamento e devolvia o corpo corrompido ao repouso. Já matar um dos mercenários era mais fácil.

Lanças não adiantavam contra os esqueletos, mas o bárbaro de Ith usava a sua espada de duas mãos. Nunca mais empunhou uma lança depois deste dia.

Ali morreram Falgor de Valuor, Tancros de Maldask, Marwulf de Indazil... Seus lanceiros e amigos. Viu seus escudos com as cabeças duplas do Cavalo Fantasma serem pisoteados pelos corcéis de batalha, ensandecidos de medo.

Os cavalos... Os corações de diversos cavalos simplesmente estouravam dentro do peito e morriam, devido ao esforço e ao terror. Os animais são mais sensíveis à profanação da vida.

O clangor de espadas, o ricochetear dos machados nas armaduras, os gritos, o sangue brotando das vísceras esparramadas, o suor fétido ardendo nas feridas recém-abertas... Tudo isso ia levando aquelas forças de Tolsfo a um cerco sem volta. O bárbaro das terras geladas do Norte nunca sentira a morte tão próxima dele.

A cegueira do terror não o atingia, no entanto. Sua cegueira era devido ao ódio às forças arcanas que arrancavam o ar dos pulmões de seus aliados, que caíam por terra, empilhando-se aos montes. Seus braços não esmoreciam no manejo da espada e pareciam guiados pelo auxílio dos deuses da guerra. Os que acreditam, gritavam seus nomes, o que os impelia mais adiante.

Para muitos, a cada golpe de espada, o braço ficava mais pesado. Com o bárbaro não era diferente, mas quanto mais pesado ficava seu braço, mais pesados eram os golpes.

E eles nunca paravam!

A cada golpe que dava, os desmortos eram destroçados de forma terrível. Fora o combate mais sangrento do qual participara e terminaria com a morte de todos os seus, não fosse a fúria de seu peito e os músculos de aço de seus braços. Em meio a correria e ao terror de verem-se vítimas de abominações que, um instante antes, empunhavam os escudos a seus lado, uma tropa dos Kurv, a serviço do rei, abandonou covardemente sua posição no flanco da colina deixando-os à sorte.

“Formação! Formação!” Bradou o bárbaro. Um corneteiro ao seu lado deu o chamado, mas os Kurv simplesmente pareciam ter algo melhor para fazer.

Os Kurv! Jamais se esqueceria deles...

Em meio à surpresa e ao desespero causado com a retirada — a visão de sua covardia foi como o apagar de uma última fagulha que se extinguia no ânimo dos homens que tentavam suplantar os espectros da morte; e morreram Taldark de Urocrast, Wullz de Acrimônia, Pardafüld de Marmult e muitos outros... — clamou pela morte do inimigo e maldisse os covardes que os abandonavam à morte certa. “Era chegado o dia de subir na garupa de Skulrjkard e viajar para o outro mundo” pensou o bárbaro de Ith.

Contudo, com a retirada dos Kurv, formou-se uma clareira bem diante do bárbaro que se encontrava à frente de uma coluna. Seu escudo praticamente inútil de tão deformado por golpes de maça. Mas “uma moeda tem sempre dois lados”, dizia um amigo de jogos... O vazio mostrou o maldito bruxo Khe, sobre uma colina pouco à frente. Próximo como nunca estivera. Do lado de fora de sua carruagem etérea, puxada por garanhões fantasmas.

“Maldito!”, disse o bárbaro, vendo o bruxo envolto em luz arcana, regozijando-se com a devastação que seus monstros causavam. O bárbaro urrou, como de costume. De ódio, mas também de desespero. Viu que havia uma chance que a sorte lhe mostrava ali. Uma chance que deveria agarrar com todas as suas forças e que mudaria seu destino a partir de então. Não precisava refletir para agir como devia.

O Bárbaro viu então um cavalo próximo de si, mas estava montado. Um semicírculo de aço se fez no ar quando a espada girou e decepou a cabeça de um dos últimos lanceiros a fugir, atrapalhando-se por alguns instantes com sua montaria assustada, desvencilhando-se das mãos cadavéricas dos mortos-vivos que já o cercavam.

Antes que o corpo do lanceiro Kurv caísse, a sela já era ocupada por outro guerreiro, com olhos faiscantes de ira, empunhando um pedaço comprido de aço ensangüentado, animado de uma selvageria descontrolada e de pura insanidade. A espada do bárbaro já não tinha mais fio, de tantos golpes que dera, mas ainda cortaria forte se continuasse sendo empunhada por aqueles braços de touro tingidos de vermelho escuro.

Os calcanhares feriram as virilhas do corcel de batalha que, num pinote, destruiu com as patas dianteiras dois crânios arcanamente animados que tentavam segurar ainda suas rédeas, com membros vacilantes.

O veloz animal percorreu a distância que o separava do negro feiticeiro em três pulos e, antes que este pudesse se dar conta de que sua guarda estava aberta, seus olhos esbugalhados viram, em um rodopio, o próprio corpo sem cabeça, que caía de joelhos por terra.

Um estrondo se ouviu, como se um raio rasgasse o firmamento.

No mesmo instante, e como que num compasso de sua mórbida dança, todos os cadáveres de machados e lanças em punho despencaram ao solo, donde nunca deveriam ter se reerguido.



Pouco tempo levou depois disso para que as forças de Alian caíssem por completo, restando aos exércitos de Kallazur apenas o saque às ricas cidades do Oeste e o usufruto de suas delícias.

Os kordóis nunca tiveram planos de invadir as estepes do Norte, mas a ameaça à própria liberdade era o único motivo que levaria o bárbaro e outros de sua raça a pegar as espadas para guerrear batalhas alheias, mesmo que incluíssem ouro e glórias, que só azeitavam os movimentos de seus braços possantes. Fora principalmente a lábia dos emissários de Tolsfo que os levaram a abandonar seus lares, aqueles a quem realmente deviam proteção.

Cheiros, sons... Seu cérebro, num relance voltou ao momento presente. Seus sentidos foram postos em alerta. Sua atenção fora repentinamente despertada para algo acima de sua cabeça, a um curto galope de distância. Suas recordações lhe embotaram os sentidos. Puxou as rédeas do animal, que empinou de súbito em meio a um relincho agudo, elevando as patas dianteiras.

Rápido como um jaguar, tirou os pés dos estribos e escorregou para trás, no meio dos outros dois cavalos que, assustados pela rapidez dos movimentos, relincharam alto e se confundiram.

Uma seta manchou o ar cravando-se no chão, onde a montaria deveria estar no próximo átimo de tempo não fosse a manobra daquele guerreiro, sobrevivente de muitas emboscadas.

O bárbaro levantou-se do chão úmido e, em meio à confusão, saltou para a bagagem do cavalo, que se interpunha entre ele e a direção de onde partira o quadrelo de besta; na esperança de que aquele fosse o animal que lhe trazia as armas certas. Não procurava a espada ainda. Seu inimigo estava além do alcance de uma lâmina.

Amaldiçoou a si mesmo de antemão, caso não fosse rápido o suficiente para pegar o escudo. Em todo caso, os cavalos seriam seu escudo. Em seguida, precisava armar sua besta de dois disparos.

De súbito, uma sombra caiu do alto de um galho nu de árvore, à sua frente.

Era um goliardo tão alto e musculoso como ele próprio. Tinha os cabelos longos e pretos repuxados para trás e presos em uma trança. Trajava um colete de pele de lobos e uma cota de malha maltratada de anéis de aço. Usava calças de couro cru costuradas de forma grosseira e botas de pele, presas com tiras de couro desfiadas.

Um brinco pequeno de argola brilhava em sua narina direita e seus pulsos eram cobertos por protetores de bronze até o meio dos antebraços. Tinha uma corneta de cobre enrolada no formato de caracol presa ao cinto, junto a uma aljava abarrotada de mortíferas setas de madeira.

Era também um bárbaro do Norte e tinha no rosto o sorriso de um ladrão que se vê frente a frente com um baú cheio de pedrarias.

O oponente trazia adaga presa ao cinto velho numa bainha que chegava até o meio da coxa esquerda e, em sua mão direita, a besta mirava algum lugar entre o ombro direito e o esquerdo do surpreso viajante.

Karizem não conseguira pegar o escudo ou sua arma. Não fora rápido o suficiente.

CONTINUA NO CAPÍTULO 2: ITH